A conversão de São Bernardo
Antes de postar esta biografia, gostaria de agradecer imensamente a colabora do jornal "O Lutador" ao qual eu era assinante e que me enviou esta preciosidade da nossa Igreja. Deus lhe abençoe imensamente Margarida Hulshof.
São Bernardo de Claraval, roguai por nós!
Segue na íntegra o documento.
"Caro Wagner,
Para responder à sua pergunta, lembrei-me de consultar um
amigo, prior de um mosteiro cistercience. Ele me mandou este
texto que achei tão interessante, que decidi encaminhar-lhe o
texto todo, em vez de apenas redigir um resumo para o jornal.
Pretendo ainda escrever o artigo, mas tenho certeza de que
você gostará de ler essa biografia de São Bernardo que segue
abaixo.
Um abraço
Margarida Hulshof"
Enviado: domingo, 9 de julho de 2006 21:19:09
A CONVERSÃO DE SÃO BERNARDO
- Resenha dos primeiros capítulos da obra
"Life and Teaching of St. Bernard",
de Ailbe Luddy -

I
01. Poucos homens de distinção possuíram tantos
biógrafos como o insigne São Bernardo, Abade de
Claraval. A longa lista principia entre os seus
contemporâneos e discípulos, quatro dos quais se
propuseram sucessivamente registrar para a posteridade
os principais fatos de sua maravilhosa carreira. Estas
primeiras Vidas latinas foram reimpressas vezes sem
conta e traduzidas em muitas línguas. Outras Vidas
baseadas naquelas apareceram também em número elevado.
02.Existem algumas dúvidas no que respeita à data de seu
nascimento. A maioria dos escritores atribui-lhe o ano
de 1091; o abade Vancard, porém, após cuidadoso estudo,
pronunciou-se a favor de 1090.
03.Nasceu Bernardo na vila de Fontaines, a pouco mais de
uma milha de distância a noroeste de Dijon.
Fontaines é uma encantadora localidade com uma população
de cerca de meio milhar de almas. As casas, semi ocultas
entre as árvores, estão construídas ao longo do declive
de uma agradável elevação no cimo da qual se ergue uma
igreja. Esta igreja ocupa hoje parte do terreno de um
imenso castelo feudal que outrora coroava a colina e
dominava a planície. O tempo fêz com que o resistente
castelo, com todas as suas pertenças, desaparecesse da
vista dos homens; teria, também, desaparecido da memória
se não tivesse sido ali o local do nascimento de São
Bernardo, um dos mais brilhantes luminares do firmamento
da Igreja.
04.Nas veias de Bernardo corria reunido o sangue de duas
das melhores famílias borgonhesas. Diz-se que seu pai,
Tescelin, estava ligado à casa real de França. De
qualquer modo, gozava de uma posição distinta entre a
nobreza de Borgonha. O nobre Tescelin encontrou na
senhora Aleth uma companheira digna dele sob todos os
aspectos. O pai dela possuía laços familiares com os
duques de Borgonha e, através deles, podia alegar
parentesco com vários soberanos europeus.
05.Aleth era uma senhora de qualidades e virtudes raras.
No começo da adolescência tomara a resolução de
consagrar a sua virgindade a Deus, mas quando aos quinze
anos foi pedida em casamento pelo senhor de Fontaines e,
incitada a aceitar por seu pai, atribuíu o fato à
vontade de Deus e sacrificou generosamente o projeto que
acarinhara.
06.Esta união foi abençoada com sete filhos: Guido,
Gerardo, Bernardo, Umbelina, André, Bartolomeu e Nivard.
Antes do nascimento de Bernardo, sua piedosa mãe teve um
sonho que a intrigou e perturbou bastante. Afigurou-se-
lhe que gerava no seu ventre um cão branco ligeiramente
avermelhado, que ladrava sem cessar. Alarmada, consultou
um santo religioso que acalmou-lhe os receios com estas
palavras:
"Tranqüilize-se,
tudo vai bem.
O cão de sua visão guardará
a casa de Deus
e ladrará fortemente em sua defesa
contra os inimigos da fé.
Por outras palavras,
a sua criança,
que está prestes a surgir no mundo,
tornar-se-á um pregador ilustre, o qual,
com a virtude de uma língua lenitiva,
como um cão bondoso,
curará as feridas do pecado
em muitas almas".
07.Aleth tomou cuidados especiais para informar as
jovens mentes de seus filhos com o hábito do auto
domínio. Ensinou seus filhos, mais pelo exemplo do que
por palavras, a contentarem-se com a simplicidade em
questões de comida e vestuário, sendo o luxo sob todas
as formas banido de sua casa. Tão pouco deixou de
vincar-lhes os deveres para com os pobres e doentes. Ela
costumava visitar os lares dos necessitados e dos
enfermos; chegava mesmo a varrer-lhes os quartos, a
preparar-lhes e servir- lhes as refeições e a lavar-lhes
a louça.
08.Estas lições não ficavam perdidas em Bernardo o qual,
sem dúvida, devia acompanhar sua mãe naquelas visitas
piedosas. Nisto, como em outras coisas, tomava-a por
modelo.
09.Por muita ternura que sentisse pelos seus pequenos,
Aleth não permitia que o seu afeto os mimasse com
indulgências supérfluas. Desde os primeiros anos
procurou incutir-lhes um amor profundo por Deus e por
tudo quanto se lhe relaciona, e sentimentos de estima
mútua e caridade. Não possuímos meios seguros der
confirmar qual era o alcance da educação ministrada aos
filhos de Tescelin sob o teto paterno, todavia poucas
dúvidas poderão existir de que eram instruídos
profundamente na religião.
10.Era desejo de Tescelin que todos os seus filhos
seguissem, como ele, a carreira de armas. À parte a
Igreja, esta era considerada a única vocação digna de um
fidalgo. Porém Aleth achou de seu dever interferir no
caso de Bernardo. Este era demasiadamente fraco e
delicado para a dureza da vida militar, ao passo que os
seus hábitos estudiosos e espantosos dotes pessoais
pareciam elegê-lo para uma carreira algo de mais
intelectual. Ficou decidido que Bernardo ingressaria
numa das escolas mais famosas da época para
aperfeiçoar-se em todas as formas de erudição.
II
01.Durante a primeira metade do século X a situação na
Europa atingira quase o barbarismo. As grandes escolas
de Carlos Magno tinham desaparecido com o seu Império, e
nada havia surgido para substituí-las.
Contudo, cerca de quarenta anos antes do nascimento de
Bernardo surgiu uma nova era. Homens de santidade e de
grande talento apareceram para reacender o facho da
sabedoria em várias cidades da Europa. Foram
estabelecidas grandes catedrais-escolas em muitas
cidades que atraíram às suas salas de ensino multidões
de estudantes interessados. Em breve foram fundados
locais de estudo semelhantes e não menos famosos junto
dos templos de catedrais já existentes, como o de Saint
Vorles, em Chatillon-sur-Seine, dirigido por sacerdotes
seculares, onde estudou São Bernardo.
O currículo de estudos em todos estes estabelecimentos
era o das velhas escolas carlovíngeas, abrangendo, além
de Teologia e Exegese das Sagradas Escrituras, aquilo
que era conhecido por Trivium e Quadrivium. O Trivium
compreendia Gramática, Dialética e Retórica. No
Quadrivium estavam incluídas Aritmética, Geometria,
Música e Astronomia. Estes sete ramos de ensino eram
conhecidos como as Sete Artes Liberais.
02.Por conseguinte, os pais de Bernardo tinham um bom
número de escolas célebres por onde escolher. A mais
próxima e não menos famosa era a de Dijon. No entanto,
em vez desta, foi a de Saint Vorles, em
Chatillon-sur-Seine, a escolhida. Possivelmente os pais
de Bernardo ponderaram que deparariam-se para o seu
filho demasiadas distrações em uma escola tão parto de
casa como a de Dijon. Além disso, Tescelin possuía uma
mansão em Chatillon-sur- Seine, onde ele havia nascido,
bastante perto da igreja de Saint Vorles. Ali a mãe
poderia fixar residência de vez em quando e observar os
progressos do rapaz. Outro fato que deve ter pesado
ainda em seus pais foi a elevada reputação, tanto de
virtudes como de erudição, de que gozavam os cônegos
seculares à testa da escola de Saint Vorles.
03.Bernardo foi, portanto, para Chatillon-sur-Seine com
cerca de oito anos de idade.
O filho de Tescelin começou a distingüir-se pouco depois
de sua chegada. Possuía uma sede insaciável de
conhecimentos e revelava uma rapidez e poder de
compreensão que espantava profundamente os seus mestres.
Sentia prazer especial em ler os poetas latinos e tão
profundamente embrenhou seu espírito nas suas
composições que conseguia citá-las corretamente até
quase o termo de sua vida. Ninguém que esteja de alguma
forma familiarizado com as suas obras duvidará de que
ele adquiriu um profundo domínio de Retórica e
Dialética.
04.A Escritura Sagrada foi, no entanto, e desde o
começo, o estudo favorito de Bernardo. Na verdade, um de
seus primeiros biógrafos assegura-nos que se ele não
descurava de meio útil algum de cultivar o espírito, o
fazia apenas com o intuito de aplicar-se com maior
proveito ao estudo da Ciência Sagrada.
05.Provavelmente não existiam alojamentos junto da
escola de Saint Vorles, pelo que os estudantes
provenientes de pontos afastados tinham de hospedar-se
na cidade. Bernardo possuía muitos amigos na localidade,
mas é mais natural supor que viveu na mansão pertencente
ao seu pai, da qual alguns de seus parentes se
ocupariam. De qualquer modo, era ali que costumava
encontrar-se com sua mãe quando ela ia visitá-lo. Foi
também naquele lugar que lhe foi concedida, ainda no
princípio de sua vida de estudante, a célebre visão que,
de certa maneira, santificou a sua juventude e que tanto
lhe agradava recordar nos últimos anos de sua vida.
06.Era véspera de Natal de 1098, o mesmo ano da fundação
do Mosteiro de Cister. Era o primeiro ano em que
Bernardo freqüentava o colégio e Aleth estava em
Chatillon, passando as festividades de Natal junto com o
seu filho. Era costume dos cristãos devotos assistirem
ao ofício solene das Matinas na noite consagrada ao
nascimento do Redentor.
Desacostumado, porém, a manter-se acordado até tão
tarde, o rapaz adormeceu na cadeira. Desenrolou-se,
então, na sua maravilhosa imaginação, o mistério
consumado no estábulo de Belém. Contemplou o divino
infante recém nascido de uma beleza inexprimível. A
Virgem Mãe permitiu-lhe mesmo que acarinhasse o seu
menino. Mas, de súbito, a visão foi interrompida por
Aleth, pois havia chegado o momento de envergar o seu
traje do coro e de seguirem para a igreja. Este primeiro
favor sobrenatural abriu no coração do rapaz uma fonte
de doçura divina que nunca mais se extingüiu. A partir
deste momento, Bernardo rendeu-se àquele apaixonado amor
pessoal pela Humanidade Sagrada de Cristo que o
distingüe de todos os servos de Deus desde a era
apostólica. A, juntamente com ele, desenvolveu-se na sua
alma a mais terna e infantil devoção por Maria.
07.Bernardo é descrito nos seus tempos de estudante como
invulgarmente pensativo, de poucas palavras e tão
extremamente tímido que constituía para ele um tormento
ter que conhecer caras novas. Os rapazes com este
temperamento raramente se tornam populares. Não
obstante, é-nos assegurado que o filho de Tescelin era
querido em Saint Vorles. Bernardo, apesar de seus modos
discretos, atraíu à sua volta os melhores talentos da
escola. Tal como sucedeu com outros ilustres servidores
de Deus, nomeadamente São Paulo e Santo Agostinho, os
sentimentos humanitários do excelente coração de
Bernardo eram extraordinariamente fortes e ternos.
08.Nunca Bernardo repudiava um amigo. Uma vez
conquistada, a sua amizade mantinha-se perpetuamente. O
seu amor, como os dons de Deus, não conhecia limites.
Sofria imensamente com a morte ou mesmo com a ausência
temporária dos amigos, porém acima de tudo com a sua
frieza e desprezo.
09.A vida escolar de Bernardo parece ter sido, de um
modo geral, bastante feliz. A existência estudiosa
tranqüila e piedosa na companhia de seus amigos queridos
acomodava-se ao seu espírito amável e dócil. Contudo,
havia algo em Saint Vorles que lhe desagradava
profundamente e o magoava. Eram as lições de Escritura e
de Teologia. Era o alvorecer do Escolasticismo ou de um
novo modo de ensino, cujos primeiros mestres,
infelizmente, estavam com demasiada freqüência
infeccionados com o espírito racionalista. Não deveria
haver mais mistérios, exceto para os ignorantes. Nenhuma
verdade seria aceita desde que não pudesse ser
apresentada como uma conclusão de um silogismo válido.
Mais tarde veremos Bernardo, sozinho, travar batalha
contra os corifeus desta escola. De momento, entretanto,
recorria à oração e à meditação das Sagradas Escrituras
para neutralizar o veneno inalado nas aulas.
10.No ano de 1110 Bernardo regressou a Fontaines. Havia
permanecido treze anos em Saint Vorles onde aprendera
tudo quanto os seus mestres lhe haviam podido ensinar. A
questão de sua carreira futura estava ainda por decidir,
mas ele contava naturalmente com o conselho de sua mãe
para tomar a importante decisão. Aguardava-o, no
entanto, uma dolorosa decepção.
11.No mês de agosto seguinte ao regresso de Bernardo,
toda a família se encontrava reunida na antiga
residência. Era um período feliz. Certo dia, porém, em
meados daquele mês, Aleth, então somente com quarenta
anos de idade e aparentemente com saúde perfeita,
anunciou serenamente que a invadira o pressentimento da
aproximação de sua morte. Suas palavras, aparentemente
destituídas de qualquer fundamento, provocaram o maior
alarme na família. A idéia era insustentável, mas os
seus filhos a conheciam muito bem para suporem que
tivesse falado de ânimo leve e sem motivo plausível. Não
voltou-se a falar mais no assunto, porém, até o dia 31
de agosto, véspera do patrono da Igreja de Fontaines.
Naquele dia Aleth adoeceu com febre e foi forçada a
recolher-se ao leito. Chamou os seus filhos à cabeceira
da cama e solicitou que os sacerdotes lhe ministrassem o
sagrado viático, pois a sua hora se aproximava.
Concluída a cerimônia, a paciente rogou-lhes que
recitassem a ladainha para os moribundos, pois sentia-se
a extingüir-se. Proferiu os responsórios com o maior
fervor até que, no esforço de persignar-se, expirou
tranqüilamente.
Para Bernardo este foi o primeiro e, talvez, o maior
desgosto de sua vida.
III
01.Mais tarde, ao comentar as palavras de Cristo,
"É vantajoso para vós
que eu me afaste",
Bernardo sugere que a afeição natural dos discípulos
pelo Mestre, embora bondosa e sagrada, podia ter
representado um obstáculo para o seu progresso
espiritual se a sua presença judiciosa não se houvesse
retirado. Talvez, no mesmo sentido, o afastamento de
Aleth fosse vantajoso para Bernardo.
02.Para compreender um pouco do que sofreu sob o peso
desta imensa cruz, deve ler-se a mais comoventes das
orações fúnebres que brotou do seu coração amargurado
perante a sepultura de seu irmão Gerardo, e recordar que
era então relativamente velho, habituado a sofrimentos e
tristezas. Quando da morte de sua mãe, nem na própria
oração Bernardo conseguia encontrar lenitivo. Umbelina
esforçou- se por consolá-lo e Bernardo, para ser-lhe
agradável, associou-se em alguns passatempos com uns
jovens que freqüentavam agora o castelo.
03.Os desportos ao ar livre mais populares naquela época
eram os torneios e a caça com falcões, xadrez, dados,
prestidigitação e dança. Gradualmente Bernardo foi
gostando destas diversões. Principiou igualmente a
sentir prazer com a companhia de certos jovens cuja
conduta não teria merecido a aprovação da sua mãe. Era
um período perigoso. Experimentava aquele abandono
gradual que mais tarde descreveu ao seu amigo, o Papa
Eugênio:
"De começo,
afigura-se-nos insuportável.
Pouco depois, quando nos achamos
algo acostumados a ele,
não se nos apresenta tão medonho.
Mais tarde, ainda nos chocará menos,
até que nos deixa de chocar por completo.
Finalmente, principiaremos a sentir prazer.
Deste modo, pouco a pouco
vai-se adquirindo uma dureza de coração
que conduz ao desprezo pela virtude".
04.É a este período de dissipação relativa que Bernardo
alude no seu décimo terceiro Sermão sobre o Cântico dos
Cânticos:
"Portanto, aqueles que me nomearam
guarda das vinhas
deviam ter observado como as minhas
são mal conservadas.
Quanto tempo permaneceram abandonadas,
esquecidas e incultas!
Evidentemente que não se obteve delas
vinho algum,
pois os ramos da virtude murcharam
no tronco ressequido da fé.
Assim era eu quando vivia no mundo".
05.Bernardo encontrava-se em um declive escorregadio e
parecia de momento totalmente alheio ao perigo.
Necessitava de um choque para chamá-lo à realidade, o
choque de uma tentação violenta, que não tardou a
surgir- lhe.
06.Certa ocasião em que seguia a cavalo longe de casa em
companhia de alguns amigos, foram surpreendidos pelo
anoitecer, vendo-se forçados a procurar hospitalidade
numa casa estranha. Durante a noite Bernardo acordou
descobrindo uma visita em seu quarto. Era a dona da casa
no papel da enviada de Satanás. Assim que se apercebeu
do que se preparava simulou, com admirável presença de
espírito, estar em presença de uma tentativa de roubo e,
com todas as forças dos seus pulmões gritou:
"Gatunos, gatunos!"
A intrusa desapareceu instantaneamente e, escusado será
dizer, efetuada uma busca minuciosa, não surgiu ladrão
algum.
Uma segunda tentação do mesmo gênero encontrou-o
igualmente firme. Mas a terceira, pela qual ele foi
responsável, aproximou-o perigosamente da orla do
abismo. Esquecido de sua vigilância habitual, permitiu
que os seus olhos pousassem por um momento em um
objetivo perigoso. Pela primeira vez, experimentou a
rebelião da carne. Alarmado, então, perante o espectro
do mal e pleno de remorsos pela sua falta, implorou
imediatamente o auxílio do céu e, afastando-se do local,
foi mergulhar em um pequeno lago e ali se manteve, meio
morto de frio, até que a perturbação interna desapareceu
totalmente. Das palavras de seus primeiros biógrafos
conclui-se que decidiu naquele momento permanecer
perpetuamente casto; de qualquer forma, resolveu
modificar o seu modo de vida.
07.Encontrava-se agora diante de uma encruzilhada,
plenamente cônscio de que para ele não poderia existir
uma posição intermédia; devia dedicar-se totalmente a
Deus ou ao mundo, em nenhum dos casos serviria uma
lealdade condicionada.
08.Para quem possuía semelhantes dons transcendentais,
físicos, morais e intelectuais, não existia na Igreja ou
no Estado posição que não estivesse ao seu alcance.
Aguardavam-no brilhantes êxitos nos diversos campos da
Teologia, Filosofia, Direito ou Letras, ou poderia ainda
ter-se enfileirado na famosa galeria de clérigos
políticos. Em qualquer profissão que escolhesse
conseguiria certamente a imortalidade concedida pelo
mundo. Afirmar que tais empreendimentos terrenos não lhe
despertavam atrativos equivaleria negar que fosse
humano. Constituiria uma depreciação do valor de seu
sacrifício. Na realidade, sabemos que sentia forte
inclinação por uma carreira literária. A ambição,
"a última enfermidade
dos espíritos nobres",
parece ter sido o inimigo mais forte que encontrou;
ambição, não de poder, mas de celebridade literária.
"Ó ambição",
exclama ele em uma carta ao Papa Eugênio,
"tormento dos teus devotos!
Como dilaceras todos os que te amam
e apesar disso continuam a amar-te!"
E no seu quarto Sermão relativo à ascensão, referindo-se
em especial à ambição do saber, diz:
"Outro homem se sente ambicioso
do saber que ensoberbece.
Que trabalhos não terá que suportar!
Que angústia e amargura de espírito!
E, no entanto, pode-se dizer-lhe:
`Por mais que te esforces,
nunca alcançarás o teu objetivo'.
Mas, ainda que consiga
adquirir grande sabedoria,
qual será o seu proveito?
O Senhor disse:
`Destruirei a sabedoria dos sábios
e reprovarei a prudência dos prudentes'".
09.Mas se Bernardo receava demasiado os perigos
mundanos, existia ali perto o magnífico mosteiro de São
Benigno, infinitamente caro ao seu coração por ser o
santuário onde repousavam os restos mortais de sua mãe,
ou o de Cluny, igualmente próximo, com as suas centenas
de abadias dependentes, as quais haviam contribuído para
a Igreja com tantos santos, papas célebres e bispos,
durante os duzentos anos da sua existência. Ali os mais
nobres empreendimentos de arte nos diferentes domínios
da música, pintura, escultura e arquitetura, para não
falar no grandioso cerimonial, dariam plena satisfação
ao seu sentido estético.
Tudo isto, porém, não correspondia à vida monástica que
Bernardo idealizara. Possuía demasiadas consolações
naturais para oferecer, ao passo que a sua alma, como
ele dizia para consigo, necessitava de um forte
medicamento. Considerava-a muito brilhante, enquanto,
segundo o seu pensar, um monge deveria possuir um
instinto semelhante ao das toupeiras, um desejo de
ocultar-se da luz do Sol e dos olhares dos homens e fim
de dedicar-se inteiramente a Deus. `Ama passar
desapercebido', que será mais tarde a sua recomendação
aos outros, constituía agora o princípio que o guiava.
Portanto, os seus pensamentos afastaram-se descontentes
de Cluny para se ocuparem com outra casa religiosa,
pobre e obscura e aparentemente prestes a extingüir-se,
o mosteiro de Cister, cuja história de sua fundação é
chagado o momento de contar.
10.Por volta de 1077 um jovem inglês, que posteriormente
ficaria conhecido com o nome de Santo Estêvão Harding,
homem de boa linhagem e educação, após ter completado
sua educação em escolas da Irlanda e Paris, havia
partido em peregrinação ao túmulo dos santos apóstolos
em Roma. Regressava agora à Inglaterra e, em seu
caminho, dirigia- se ao novo mosteiro beneditino de
Molesmes, na Borgonha, para solicitar hospedagem e,
aproveitando a sua estadia, certificar-se dos relatos
que corriam sobre o extraordinário fervor desta
fundação.
Se Estêvão esperava encontrar em Molesmes uma magnífica
abadia deve ter ficado decepcionado. O mosteiro, se
assim podia ser chamado, consistia de um grupo de
cabanas de vime agrupadas em redor de um oratório de
madeira e cercadas de um terreno cultivado, desbravado
no centro de uma extensa floresta. Os monges, em número
reduzido, eram extremamente pobres, comendo pão, quando
conseguiam algum, obtido com o trabalho de suas mãos e
não poucas vezes se viam reduzidos à situação de
indigência absoluta.
Estêvão, no entanto, longe de sentir repulsa perante o
espetáculo de tantas privações, contemplo com sincera
admiração a coragem daqueles homens que haviam em boa
verdade abandonado tudo para seguir o seu Mestre. Julgou
por fim ter encontrado a realização do verdadeiro ideal
monástico e decidiu permanecer o tempo que lhe restasse
de vida naquele lugar consagrado. O abade de Molesmes,
Roberto, nascido em 1018, descendia de uma família nobre
de Champagne, homem de fino talento e elevados dons
pessoais, e um reconhecido mestre da vida espiritual,
cuja reputação de sabedoria e santidade já percorrera
toda a Europa. Alberico, o prior, era igualmente
conhecido pelo seu saber e devoção. Quanto aos monges,
eram humildes e trabalhadores, adeptos sinceros da
disciplina e profundamente dedicados ao seu santo abade.
O peregrino inglês solicitou e obteve admissão nesta
família, agora a aumentar rapidamente em número, feliz
na esperança de encontrar finalmente a paz.
11.Durante algum tempo tudo correu bem. Embora a vida
fosse árdua, estava liberta dos espinhos das
preocupações mundanas e, além disso, adoçada com o mel
das consolações divinas. No entanto, surgiu uma ocasião
em que os mantimentos escassearam e os monges se viram
ameaçados de morrer de fome, quando a Providência lhes
proporcionou alguns amigos generosos que lhes forneceram
não só o auxílio imediato para as suas necessidades como
também os libertou de terem de ganhar o sustento com o
trabalho de suas mãos.
Sendo o que é a fraqueza humana, o resultado era fácil
de prever. A virtude que florescera no inverno da
adversidade, murchou e feneceu perante o brilho da
prosperidade, e com a fortuna material veio o desamparo
espiritual. O abade proferia recriminações, súplicas,
ameaças, tudo debalde. Por fim, Roberto decidiu
abandonar para sempre os seus filhos degenerados. Na sua
resolução foi acompanhado por Alberico, o prior,
Estêvão, agora subprior e cerca de dezenove dos membros
mais fervorosos da comunidade.
12.Partiram no começo de 1098 para uma floresta vizinha,
situada na Diocese de Chalons. O ponto mais denso e
obscuro deste ermo silvestre, esconderijo seguro da
raposa e do lobo, num local conhecido pelo nome de
Cister, veio a ser, deste modo, o berço da Ordem
Cisterciense.
13.Cerca de um ano mais tarde a comunidade de Molesmes,
prometendo uma regeneração total, conseguiu que o Papa
Urbano II ordenasse a volta de Roberto ao seu mosteiro
de origem. No novo mosteiro de Cister Alberico tornou-se
abade e Estêvão foi nomeado prior.
14.No ano de 1109 Santo Alberico abandonou para sempre
os seus companheiros e Estêvão foi escolhido para
suceder- lhe como abade de Cister. Apesar de haver
herdado todas as virtudes de seu santo predecessor, o
novo abade tornou-se notado especialmente pelo seu amor
aos pobres. Decidiu que seus subordinados deveriam se
contentar com a simplicidade. Encarava as ornamentações
supérfluas das igrejas monásticas como um desacato à
humildade religiosa e uma fértil fonte de distrações.
Tudo foi banido inexoravelmente. Estêvão chegava a
lamentar-se de que o amparo fornecido pelos ricos não
permitia que o seu mosteiro ficasse tão dependente da
Providência como ele desejava. Hugo, o novo Duque da
Borgonha, foi por este motivo informado que as suas
visitas a Cister deixavam de ser desejáveis, embora seu
irmão fizesse parte da comunidade e seu pai estivesse
sepultado na igreja da Abadia.
15.A verdade era que Estêvão decidira não permitir laço
algum entre a Ordem e o mundo. E conquanto previsse as
conseqüências que esta ruptura acarretaria para Cister,
não vacilaria em seguir o único caminho que os seus
princípios lhe indicavam.
16.O mosteiro não tardou a ficar reduzido ao estado de
abandono. Haviam decorrido muitos anos sem a chegada de
um único noviço.
17.No ano de 1111, quando a mortalidade penetrou na
comunidade e Estêvão viu seus filhos, um após o outro,
serem transportados para o túmulo, ele foi invadido pela
dúvida torturante sobrte se a vida austera que ele e os
seus monges haviam observado estaria de acordo com a
vontade divina. Agindo, então, conforme se crê, por uma
inspiração especial, ordenou a um irmão moribundo que
voltasse do além com uma resposta.
18.Alguns dias após a sua morte, o religioso apareceu
envolto em uma auréola, com a certeza de que o seu
sacrifício fora aceito. Dentro em pouco a sua paciência
seria recompensada de uma maneira que ultrapassaria as
suas mais otimistas esperanças. O abade compreendeu
então que cada estabelecimento, assim como cada
indivíduo, destinado a realizar algum feito importante
para a glória divina, deve ficar marcado com o sinal da
cruz.
IV
01.Tal era a abadia para onde os pensamentos de Bernardo
começaram a dirigir-se quando se interrogou acerca de
seu futuro. Certamente não poderia encontrar-se outro
refúgio tão adequado para quem desejasse morrer para o
mundo e dedicar-se inteiramente à devoção.
02.No entanto, a prudência aconselhava-o a, antes de
prosseguir, consultar alguém cuja devoção e sabedoria
fossem dignas de confiança, alguém que desempenhasse
para ele a função de guia espiritual. Ninguém lhe
pareceu melhor qualificado do que o seu tio materno, o
qual, embora fosse militar profissional com elevada
patente no exército, era irmão digno da santa Aleth.
Gaudry estava ocupado naquele momento no cerco de
Grancey-le-Château mas, mesmo assim, procurado por
Bernardo, longe de tentar dissuadir o jovem de seu
propósito, mostrou a sua inteira aprovação.
03.Bernardo possuía outros parentes naquele acampamento
militar aos quais, depois de ver-se assim encorajado por
seu tio, revelou também a sua intenção. Todos estes, no
entanto, acolheram a comunicação com um estado de
espírito bastante diferente. Bernardo viu-se
imediatamente assaltado por uma onda de protestos
veementes. Cister! Só esta palavra bastava para
inspirar- lhes horror. Representaria autêntico suicídio
para alguém como ele. Não era capaz de descobrir melhor
emprego para o seu talento do que enterrá-lo sob o signo
do silêncio perpétuo? Não receava o castigo indicado
para o servo inútil? Se se considerava incapaz para o
exército, não poderia buscar uma carreira na Corte ou na
Igreja, ou em algumas das escolas famosas de Teologia,
Filosofia, Direito ou Letras?
04.A princípio estes argumentos não lhe causavam
impressão, mas como o ataque se mantinha, foi
fraquejando até que cedeu totalmente. Não seria monge,
mas sim homem de letras. Seus irmãos, evidentemente,
ficaram satisfeitíssimos com o sucesso obtido. Quanto a
Bernardo, sentia tudo menos contentamento. Regressou de
Fontaines amargurado, perseguido pela dolorosa suspeita
de que desobedecia a uma chamada divina e expunha ao
perigo a sua salvação. Anularia ele assim a consagração
de seu nascimento ao dedicar a vida em busca da vaidade?
05.Por fim, no outono de 1111, caminhando pela estrada
de Grancey onde o exército ainda se achava acampado, ao
passar por uma igreja solitária entrou e, prostrado
diante do altar, implorou ao Deus Todo Poderoso que se
apiedasse da sua desdita. A sensação da presença de sua
mãe invadiu-o com espantoso realismo e, ao mesmo tempo,
o gelo que cobria o seu coração derreteu-se e a sua alma
angustiada encontrou conforto em uma torrente de
lágrimas de felicidade. Todas as dúvidas e trevas se lhe
desvaneceram do espírito, iluminado uma vez mais pelo
Sol radiante da graça divina. Com um regozijo maior do
que a sua antiga tristeza, Bernardo chegou a Grancey e
informou os seus parentes do renovado propósito de
consagrar a vida a Deus e à sagrada religião. O ataque
reacendeu-se com vigor mas, desta vez, inutilmente.
06.Então, perante a surpresa geral, Gaudry, apesar de
marido e pai, anunciou a intenção de acompanhar o seu
sobrinho a Cister. Seguiram juntos para Fontaines para
despedirem-se de Tescelin. No castelo, encontraram
Bartolomeu, irmão de Bernardo, nesta época um rapaz de
dezesseis anos, que acedeu prontamente ao convite
fraterno e prometeu reunir-se-lhes na sua fuga do mundo.
07.Encorajado por este triunfo, Bernardo concebeu o
propósito ambicioso a aparentemente infrutífero de
induzir os seus irmãos no exército a proceder da mesma
forma. Fêz, portanto, mais uma vez a sua aparição no
acampamento.
08.Principiou seu apostolado com André, que acabava de
receber as esporas de cavaleiro e cujo espírito se
encontrava estonteado com sonhos de glória militar. A
proposta foi acolhida com soberano desdém. Não se
curvava perante argumento algum, até que repentinamente
a santa Aleth surgiu diante dos seus olhos, a sorrir
brandamente e encorajando-o, como que a apoiar o apelo
de seu irmão. O assunto ficou imediatamente resolvido. A
carreira militar de André findara.
09.A seguir foi a vez de Guido. O caso era um pouco
delicado pois, além de casado, possuía filhos, o mais
novo dos quais ainda de peito. O atentado para separar
laços tão sagrados parece-nos hoje extremamente cruel,
se não mesmo criminoso, mas devemos recordar-nos que
Bernardo era um santo de Deus e agia por inspiração
divina. Guido, homem de caráter profundamente religioso,
vencido pela sua urgência, prometeu ingressar no
convento com a condição que a sua jovem esposa, Isabel,
desse o seu consentimento. Era este um duro sacrifício
para pedir à pobre esposa e mãe. No entanto, Bernardo
não hesitou. Em sua opinião nenhum sacrifício era
excessivo desde que fosse dedicado a Deus e à
eternidade. Porém Isabel rejeitou a resposta com
indignação. Consentir em renunciar ao marido que adorava
e ao pai dos seus desamparados filhos? Nunca. Bernardo
então assegurou-lhe que não haveria necessidade disso,
pois antes da próxima Páscoa Guido ficaria livre para
seguir a sua vocação por consentimento de sua esposa ou
por sua morte.
E realmente assim sucedeu. Isabel adoeceu pouco depois
e, prestes a expirar, mandou chamar o seu inflexível
cunhado. Quando este chegou ela exprimiu-lhe o seu
arrependimento por se haver oposto à vontade de Deus.
Guido agora tinha o seu consentimento para ingressar no
convento. Depois desta cena principiou a melhorar e não
tardou a ficar completamente restabelecida. Por volta de
1114 retirou-se para o convento de Jully, uma casa
beneditina dependente de Molesmes, onde veio a tornar-se
superiora.
10.Conquistado Guido, Bernardo dedicou-se ao seu segundo
irmão. Gerardo era um militar nato com elevada reputação
de bravura e prudência, e extremamente popular entre os
soldados. Em seu entender, a carreira das armas era a
mais nobre a que um homem poderia se dedicar. Sentia-se,
portanto, altamente indignado com o fanatismo de
Bernardo e com a loucura dos que o seguiam. Podemos
imaginar como recebeu o convite para imitar-lhes o
exemplo. Os argumentos e as súplicas apenas serviram
para o irritar ainda mais. Então Bernardo, inspirado por
aquele espírito de profecia já revelado no caso de
Isabel, pousou a mão no peito do militar e lhe disse:
"Sei perfeitamente
que apenas a dor
te abrirá os olhos.
Portanto escuta:
não tardará a surgir o dia
em que uma lança
te perfurará o peito
e abrirá até o coração
o caminho para os conselheiros da salvação
que agora desprezas rancorosamente.
Invadir-ta-á o temor da morte,
mas não morrerás".
Dias depois Gerardo foi ferido e feito prisioneiro.Uma
lança cravou-se-lhe no corpo no local exato onde havia
pousado a mão de seu irmão. Convencido de que o
ferimento era mortal e que estava prestes a expirar,
invadiu-o um intenso terror e, sem saber o que dizia,
gritou:
"Sou um monge,
um monge de Cister".
Bernardo. chamado às pressas, recusou-se a comparecer.
Declarou, em vez disso, ao mensageiro:
"Assegurai-lhe que o seu ferimento
não é mortal,
mas que lhe ficará cravado
para sempre".
E assim sucedeu. Tal como Santo Inácio muitos anos mais
tarde, Gerardo teve bastante tempo disponível para
meditar na futilidade das coisas terrenas e na
importância suprema das coisas eternas.
11.Bernardo e seus novos companheiros não seguiram,
todavia, imediatamente para Cister. Retirados
temporariamente em Chatillon, foi considerado por eles
um bom presságio quando, na primeira vez em que
apareceram juntos na igreja, em 22 de outubro de 1111,
terem escutado a leitura da seguinte passagem da
Epístola aos Filipenses:
"Aquele que principiou em vós
uma boa obra,
aperfeiçoa-la-á até o dia
de Jesus Cristo".
12.Lembrou-se então Bernardo de um seu amigo dos tempos
de estudante, Hugo de Macon, e propôs-se a que este
jovem os acompanhasse ao convento. Hugo havia ouvido
falar do estranho comportamento de Bernardo, mas havia
entendido que ele estaria se preparando para uma viagem
em peregrinação à Terra Santa, o que lhe parecia uma
idéia interessante, mas quando entendeu que o destino
era Cister, sentiu um desgosto profundo. Suspirava e
lamentava-se inconsolavelmente. Na manhã seguinte as
suas lágrimas ainda corriam, mas sua explicação já era
outra:
"Ontem eu chorava por ti,
hoje eu choro por mim",
disse a Bernardo. Converteu-se.
13.Bernardo dedicou-se a seguir a um apostolado regular
entre os seus amigos e conhecidos. Tão maravilhoso foi o
seu êxito que, segundo nos contam os escritores
contemporâneos,
"as mães ocultavam-lhe os filhos,
as esposas os maridos
e os amigos os conhecidos".
O seu apelo fazia-se quase sempre irresistível pois,
como os mesmos autores acrescentam,
"o Espírito Santo conferia-lhe
um tal fervor e poder
nas suas palavras
que estas suplantavam
qualquer outro atrativo".
Num espaço de tempo relativamente curto Bernardo reuniu
na residência de seu pai em Chatillon trinta e dois
jovens, alguns deles casados, e não poucos pertencentes
às primeiras famílias de Borgonha.
14.Quanto ao irmão Gerardo, durante este período esteve
quase cinco meses recluso em sua prisão. Certa manhã, no
começo da Quaresma, ouviu distintamente uma voz que lhe
dizia:
"Hoje recuperarás a liberdade".
O dia decorreu até ao anoitecer sem que surgisse a
prometida libertação. Porém, a esta hora, ao sacudir as
cadeias que lhe sujeitavam os pés, verificou assombrado
que cediam ao seu impulso. O ferrolho da porta deslizou
facilmente à sua pressão. No exterior encontrava-se uma
enorme multidão a qual, em vez de impedir-lhe a fuga,
dispersou-se aterrorizada. Nas ruas alguns dos
carcereiros dirigiram-se-lhe e falaram com ele,
aparentemente esquecidos que tratava-se de um
prisioneiro, sem demonstrarem a menor surpresa em verem
um inimigo transitar livremente pelas ruas da cidade.
Por fim, após atravessar os portões da cidade sem
encontrar obstáculo algum, dirigiu-se para Chatillon.
15.Os jovens ali reunidos seguiam uma vida em comum,
tendo a Bernardo como a seu superior virtual. O tempo
era dedicado a exercícios espirituais como preparação
para o futuro. Neste interim, um deles foi assaltado por
uma visão estranha que os intrigou profundamente e que
só o tempo poderia interpretar. Viu-os a todos sentados
a uma mesa guarnecida de comida, maravilhosamente branca
e de sabor agradável, que partilhavam animadamente com a
exceção de dois deles. Um destes recusava tocá-la, o
outro parecia impossibilitado de levá-la à boca. A visão
foi explicada mais tarde com a deserção de dois de seus
membros.
16.A permanência dos amigos em Chatillon durou seis
meses, de outubro a abril. Nessa ocasião, os assuntos
que lhes haviam retardado a partida, entre eles a
disposição de alguns assuntos pendentes de alguns dos
membros, já estavam resolvidos e estavam livres para
executarem os seus desígnios. Contudo, Bernardo e seus
irmãos deviam ir antes a Fontaines para receber a bênção
de despedida de seu pai. Foi uma cena comovente, os
cinco nobres irmãos ajoelhados diante de Tescelin.
Custou-lhe bastante o sacrifício de renunciar para
sempre àqueles jovens que representavam o seu orgulho,
esperança e felicidade. Mas dominando com esforço a
emoção, abençoou-os em silêncio.
17.Enquanto se afastavam, viram Nivard, um rapazinho de
uns doze anos, entretido a brincar com outras crianças.
Guido chamou-o e disse-lhe:
"Irmãozinho, quando cresceres serás rico,
pois deixamos-te o castelo
e todas as outras propriedades",
ao que o jovem replicou:
"Para vós o céu, para mim a terra.
Esta distribuição não é justa".
18.No castelo ancestral o desconsolado pai lamentava a
desaparição de suas esperanças e a perda de cinco dos
seus sete filhos. Seu desgosto teria sido mais intenso
se pudesse prever o dia não muito distante em que os
dois destinados a consolá-lo também seguiriam o exemplo
dos irmãos. Então nesse dia o velho fidalgo também
trocará a solidão e a tristeza das suas salas desertas
pelo claustro.
19.Certo dia, próximo da Páscoa, no ano da graça de
1112, possivelmente no Domingo de Páscoa, o abade de
Cister foi informado da chegada ao convento de um grupo
de cavalheiros que desejavam falar-lhe. Bernardo falou
em nome dos companheiros e solicitou para eles, assim
como para si próprio, a admissão na irmandade. o santo
abade compreendeu que aquilo era a realização da
profecia e sentiu o coração repleto de gratidão e de
alegria.
20.Bernardo encontrava-se no vigésimo segundo ano da sua
existência quando ingressou em Cister. Pouco ficou
registrado da sua vida no noviciado. No entanto, sabemos
como era preenchido o seu tempo, visto que a regra
sagrada de São Bento, seguida à letra no convento,
determina até os mais ínfimos pormenores as ocupações
dos monges ao longo das dezoito ou dezenove horas de seu
prolongado dia.
21.Bernardo adquiriu um profundo gosto pela salmodia que
lhe ocupava seis ou sete horas de cada dia. O tempo do
ofício nunca lhe parecia suficientemente prolongado para
a sua devoção. No capítulo do jejum e abstinência
ultrapassava de longe as prescrições da regra,
indubitavelmente com a aprovação dos superiores. Em
conseqüência deste excesso contraíu, ainda como noviço,
o cruel desarranjo gástrico que o atormentou toda a vida
e o levou finalmente à sepultura. A tal ponto mortificou
o seu paladar que pareceu ter perdido o sentido do
gosto. Assim, conta-se que uma vez ingeriu por engano
azeite em lugar de água sem que tivesse notado a
diferença. O sentido da audição foi igualmente submetido
a penitência. Escutou com excessiva atenção as notícias
que vinham a comunicar-lhe a ponto de, ao chegar ao coro
para o Ofício da Nona, descobrir a ausência de devoção e
o seu espírito presa de distrações. O fato simplesmente
decidiu-o a não voltar a prestar atenção a qualquer
conversa. Posteriormente, outras pessoas que o visitaram
notaram que ele tapara os ouvidos com algodão. Com isso
conseguiu um duplo propósito, o de não escutar as
notícias que o distraíssem e o de adquirir a fama de
estúpido. Com a vista podemos avaliar a que ponto ele
acautelava os olhos pelo fato de que, no final de seu
ano de noviciado ele ainda ignorava se o teto de seus
aposentos era plano ou abobadado e de que forma era
iluminada a igreja. Anos mais tarde ele percorreria um
dia inteiro de viagem às margens do belíssimo lago Leman
sem ter erguido a vista uma única vez.
22.O trabalho manual era a única coisa em que, apesar de
sua boa vontade, Bernardo não conseguia igualar-se aos
seus irmãos. A sua força revelou-se insuficiente para os
pesados trabalhos do campo. Mas havia uma outra espécie
de trabalho a que se dedicavam os monges de Cister
durante o ano de noviciado de Bernardo. Santo Estêvão,
conforme já dissemos, era um homem culto, dos mais
cultos de sua época. Logo que foi nomeado abade
empreendeu uma tarefa que lhe valeu a admiração de todos
os estudantes de gerações posteriores. A existência de
inúmeras variações nos códices das Sagradas Escrituras
sugeriu-lhe a idéia de elaborar uma nova edição revista
para a utilização dos monges. Constituía um
empreendimento que implicava a compilação de versões em
diversas línguas, a fim de obter a melhor leitura
possível. A obra traduziu- se num amplo sucesso e ainda
hoje é de grande importância. Em seguida Estêvão
dedicou-se ao Missal fazendo com este e com vários
outros textos litúrgicos e até com a Regra de São Bento
e o calendário o que já havia feito com a Bíblia.
23.Bernardo chegou ao termo de seu noviciado com a saúde
abalada, mas mais decidido do que nunca a consagrar a
vida à prática da penitência. A sua carreira
constituiria um holocausto, uma renúncia do seu ser que
cravaria na cruz com os votos irrevogáveis da religião.
Nunca se permitiu desviar-se um mínimo deste objetivo.
Era seu costume reanimar sua devoção, em especial ao
enfrentar alguma dificuldade, colocando diante de si
próprio a interrogação:
"Bernardo, Bernardo,
a que vieste?"
Prestaram então os votos de pobreza, castidade,
obediência, conversão de hábitos e firmeza, de acordo
com o cerimonial observado ainda hoje na Ordem
Cisterciense.
Oração de São Bernardo
Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria,
que nunca se ouviu dizer
que algum daqueles
que têm recorrido à vossa protecção,
implorado a vossa assistência,
e reclamado o vosso socorro,
fosse por Vós desamparado.
Animado eu, pois, de igual confiança,
a Vós, Virgem entre todas singular,
como a Mãe recorro,
de Vós me valho e,
gemendo sob o peso dos meus pecados,
me prostro aos Vossos pés.
Não desprezeis as minhas súplicas,
ó Mãe do Filho de Deus humanado,
mas dignai-Vos
de as ouvir propícia
e de me alcançar o que Vos rogo. Amen.
Antes de postar esta biografia, gostaria de agradecer imensamente a colabora do jornal "O Lutador" ao qual eu era assinante e que me enviou esta preciosidade da nossa Igreja. Deus lhe abençoe imensamente Margarida Hulshof.
São Bernardo de Claraval, roguai por nós!
Segue na íntegra o documento.
"Caro Wagner,
Para responder à sua pergunta, lembrei-me de consultar um
amigo, prior de um mosteiro cistercience. Ele me mandou este
texto que achei tão interessante, que decidi encaminhar-lhe o
texto todo, em vez de apenas redigir um resumo para o jornal.
Pretendo ainda escrever o artigo, mas tenho certeza de que
você gostará de ler essa biografia de São Bernardo que segue
abaixo.
Um abraço
Margarida Hulshof"
Enviado: domingo, 9 de julho de 2006 21:19:09
A CONVERSÃO DE SÃO BERNARDO
- Resenha dos primeiros capítulos da obra
"Life and Teaching of St. Bernard",
de Ailbe Luddy -

I
01. Poucos homens de distinção possuíram tantos
biógrafos como o insigne São Bernardo, Abade de
Claraval. A longa lista principia entre os seus
contemporâneos e discípulos, quatro dos quais se
propuseram sucessivamente registrar para a posteridade
os principais fatos de sua maravilhosa carreira. Estas
primeiras Vidas latinas foram reimpressas vezes sem
conta e traduzidas em muitas línguas. Outras Vidas
baseadas naquelas apareceram também em número elevado.
02.Existem algumas dúvidas no que respeita à data de seu
nascimento. A maioria dos escritores atribui-lhe o ano
de 1091; o abade Vancard, porém, após cuidadoso estudo,
pronunciou-se a favor de 1090.
03.Nasceu Bernardo na vila de Fontaines, a pouco mais de
uma milha de distância a noroeste de Dijon.
Fontaines é uma encantadora localidade com uma população
de cerca de meio milhar de almas. As casas, semi ocultas
entre as árvores, estão construídas ao longo do declive
de uma agradável elevação no cimo da qual se ergue uma
igreja. Esta igreja ocupa hoje parte do terreno de um
imenso castelo feudal que outrora coroava a colina e
dominava a planície. O tempo fêz com que o resistente
castelo, com todas as suas pertenças, desaparecesse da
vista dos homens; teria, também, desaparecido da memória
se não tivesse sido ali o local do nascimento de São
Bernardo, um dos mais brilhantes luminares do firmamento
da Igreja.
04.Nas veias de Bernardo corria reunido o sangue de duas
das melhores famílias borgonhesas. Diz-se que seu pai,
Tescelin, estava ligado à casa real de França. De
qualquer modo, gozava de uma posição distinta entre a
nobreza de Borgonha. O nobre Tescelin encontrou na
senhora Aleth uma companheira digna dele sob todos os
aspectos. O pai dela possuía laços familiares com os
duques de Borgonha e, através deles, podia alegar
parentesco com vários soberanos europeus.
05.Aleth era uma senhora de qualidades e virtudes raras.
No começo da adolescência tomara a resolução de
consagrar a sua virgindade a Deus, mas quando aos quinze
anos foi pedida em casamento pelo senhor de Fontaines e,
incitada a aceitar por seu pai, atribuíu o fato à
vontade de Deus e sacrificou generosamente o projeto que
acarinhara.
06.Esta união foi abençoada com sete filhos: Guido,
Gerardo, Bernardo, Umbelina, André, Bartolomeu e Nivard.
Antes do nascimento de Bernardo, sua piedosa mãe teve um
sonho que a intrigou e perturbou bastante. Afigurou-se-
lhe que gerava no seu ventre um cão branco ligeiramente
avermelhado, que ladrava sem cessar. Alarmada, consultou
um santo religioso que acalmou-lhe os receios com estas
palavras:
"Tranqüilize-se,
tudo vai bem.
O cão de sua visão guardará
a casa de Deus
e ladrará fortemente em sua defesa
contra os inimigos da fé.
Por outras palavras,
a sua criança,
que está prestes a surgir no mundo,
tornar-se-á um pregador ilustre, o qual,
com a virtude de uma língua lenitiva,
como um cão bondoso,
curará as feridas do pecado
em muitas almas".
07.Aleth tomou cuidados especiais para informar as
jovens mentes de seus filhos com o hábito do auto
domínio. Ensinou seus filhos, mais pelo exemplo do que
por palavras, a contentarem-se com a simplicidade em
questões de comida e vestuário, sendo o luxo sob todas
as formas banido de sua casa. Tão pouco deixou de
vincar-lhes os deveres para com os pobres e doentes. Ela
costumava visitar os lares dos necessitados e dos
enfermos; chegava mesmo a varrer-lhes os quartos, a
preparar-lhes e servir- lhes as refeições e a lavar-lhes
a louça.
08.Estas lições não ficavam perdidas em Bernardo o qual,
sem dúvida, devia acompanhar sua mãe naquelas visitas
piedosas. Nisto, como em outras coisas, tomava-a por
modelo.
09.Por muita ternura que sentisse pelos seus pequenos,
Aleth não permitia que o seu afeto os mimasse com
indulgências supérfluas. Desde os primeiros anos
procurou incutir-lhes um amor profundo por Deus e por
tudo quanto se lhe relaciona, e sentimentos de estima
mútua e caridade. Não possuímos meios seguros der
confirmar qual era o alcance da educação ministrada aos
filhos de Tescelin sob o teto paterno, todavia poucas
dúvidas poderão existir de que eram instruídos
profundamente na religião.
10.Era desejo de Tescelin que todos os seus filhos
seguissem, como ele, a carreira de armas. À parte a
Igreja, esta era considerada a única vocação digna de um
fidalgo. Porém Aleth achou de seu dever interferir no
caso de Bernardo. Este era demasiadamente fraco e
delicado para a dureza da vida militar, ao passo que os
seus hábitos estudiosos e espantosos dotes pessoais
pareciam elegê-lo para uma carreira algo de mais
intelectual. Ficou decidido que Bernardo ingressaria
numa das escolas mais famosas da época para
aperfeiçoar-se em todas as formas de erudição.
II
01.Durante a primeira metade do século X a situação na
Europa atingira quase o barbarismo. As grandes escolas
de Carlos Magno tinham desaparecido com o seu Império, e
nada havia surgido para substituí-las.
Contudo, cerca de quarenta anos antes do nascimento de
Bernardo surgiu uma nova era. Homens de santidade e de
grande talento apareceram para reacender o facho da
sabedoria em várias cidades da Europa. Foram
estabelecidas grandes catedrais-escolas em muitas
cidades que atraíram às suas salas de ensino multidões
de estudantes interessados. Em breve foram fundados
locais de estudo semelhantes e não menos famosos junto
dos templos de catedrais já existentes, como o de Saint
Vorles, em Chatillon-sur-Seine, dirigido por sacerdotes
seculares, onde estudou São Bernardo.
O currículo de estudos em todos estes estabelecimentos
era o das velhas escolas carlovíngeas, abrangendo, além
de Teologia e Exegese das Sagradas Escrituras, aquilo
que era conhecido por Trivium e Quadrivium. O Trivium
compreendia Gramática, Dialética e Retórica. No
Quadrivium estavam incluídas Aritmética, Geometria,
Música e Astronomia. Estes sete ramos de ensino eram
conhecidos como as Sete Artes Liberais.
02.Por conseguinte, os pais de Bernardo tinham um bom
número de escolas célebres por onde escolher. A mais
próxima e não menos famosa era a de Dijon. No entanto,
em vez desta, foi a de Saint Vorles, em
Chatillon-sur-Seine, a escolhida. Possivelmente os pais
de Bernardo ponderaram que deparariam-se para o seu
filho demasiadas distrações em uma escola tão parto de
casa como a de Dijon. Além disso, Tescelin possuía uma
mansão em Chatillon-sur- Seine, onde ele havia nascido,
bastante perto da igreja de Saint Vorles. Ali a mãe
poderia fixar residência de vez em quando e observar os
progressos do rapaz. Outro fato que deve ter pesado
ainda em seus pais foi a elevada reputação, tanto de
virtudes como de erudição, de que gozavam os cônegos
seculares à testa da escola de Saint Vorles.
03.Bernardo foi, portanto, para Chatillon-sur-Seine com
cerca de oito anos de idade.
O filho de Tescelin começou a distingüir-se pouco depois
de sua chegada. Possuía uma sede insaciável de
conhecimentos e revelava uma rapidez e poder de
compreensão que espantava profundamente os seus mestres.
Sentia prazer especial em ler os poetas latinos e tão
profundamente embrenhou seu espírito nas suas
composições que conseguia citá-las corretamente até
quase o termo de sua vida. Ninguém que esteja de alguma
forma familiarizado com as suas obras duvidará de que
ele adquiriu um profundo domínio de Retórica e
Dialética.
04.A Escritura Sagrada foi, no entanto, e desde o
começo, o estudo favorito de Bernardo. Na verdade, um de
seus primeiros biógrafos assegura-nos que se ele não
descurava de meio útil algum de cultivar o espírito, o
fazia apenas com o intuito de aplicar-se com maior
proveito ao estudo da Ciência Sagrada.
05.Provavelmente não existiam alojamentos junto da
escola de Saint Vorles, pelo que os estudantes
provenientes de pontos afastados tinham de hospedar-se
na cidade. Bernardo possuía muitos amigos na localidade,
mas é mais natural supor que viveu na mansão pertencente
ao seu pai, da qual alguns de seus parentes se
ocupariam. De qualquer modo, era ali que costumava
encontrar-se com sua mãe quando ela ia visitá-lo. Foi
também naquele lugar que lhe foi concedida, ainda no
princípio de sua vida de estudante, a célebre visão que,
de certa maneira, santificou a sua juventude e que tanto
lhe agradava recordar nos últimos anos de sua vida.
06.Era véspera de Natal de 1098, o mesmo ano da fundação
do Mosteiro de Cister. Era o primeiro ano em que
Bernardo freqüentava o colégio e Aleth estava em
Chatillon, passando as festividades de Natal junto com o
seu filho. Era costume dos cristãos devotos assistirem
ao ofício solene das Matinas na noite consagrada ao
nascimento do Redentor.
Desacostumado, porém, a manter-se acordado até tão
tarde, o rapaz adormeceu na cadeira. Desenrolou-se,
então, na sua maravilhosa imaginação, o mistério
consumado no estábulo de Belém. Contemplou o divino
infante recém nascido de uma beleza inexprimível. A
Virgem Mãe permitiu-lhe mesmo que acarinhasse o seu
menino. Mas, de súbito, a visão foi interrompida por
Aleth, pois havia chegado o momento de envergar o seu
traje do coro e de seguirem para a igreja. Este primeiro
favor sobrenatural abriu no coração do rapaz uma fonte
de doçura divina que nunca mais se extingüiu. A partir
deste momento, Bernardo rendeu-se àquele apaixonado amor
pessoal pela Humanidade Sagrada de Cristo que o
distingüe de todos os servos de Deus desde a era
apostólica. A, juntamente com ele, desenvolveu-se na sua
alma a mais terna e infantil devoção por Maria.
07.Bernardo é descrito nos seus tempos de estudante como
invulgarmente pensativo, de poucas palavras e tão
extremamente tímido que constituía para ele um tormento
ter que conhecer caras novas. Os rapazes com este
temperamento raramente se tornam populares. Não
obstante, é-nos assegurado que o filho de Tescelin era
querido em Saint Vorles. Bernardo, apesar de seus modos
discretos, atraíu à sua volta os melhores talentos da
escola. Tal como sucedeu com outros ilustres servidores
de Deus, nomeadamente São Paulo e Santo Agostinho, os
sentimentos humanitários do excelente coração de
Bernardo eram extraordinariamente fortes e ternos.
08.Nunca Bernardo repudiava um amigo. Uma vez
conquistada, a sua amizade mantinha-se perpetuamente. O
seu amor, como os dons de Deus, não conhecia limites.
Sofria imensamente com a morte ou mesmo com a ausência
temporária dos amigos, porém acima de tudo com a sua
frieza e desprezo.
09.A vida escolar de Bernardo parece ter sido, de um
modo geral, bastante feliz. A existência estudiosa
tranqüila e piedosa na companhia de seus amigos queridos
acomodava-se ao seu espírito amável e dócil. Contudo,
havia algo em Saint Vorles que lhe desagradava
profundamente e o magoava. Eram as lições de Escritura e
de Teologia. Era o alvorecer do Escolasticismo ou de um
novo modo de ensino, cujos primeiros mestres,
infelizmente, estavam com demasiada freqüência
infeccionados com o espírito racionalista. Não deveria
haver mais mistérios, exceto para os ignorantes. Nenhuma
verdade seria aceita desde que não pudesse ser
apresentada como uma conclusão de um silogismo válido.
Mais tarde veremos Bernardo, sozinho, travar batalha
contra os corifeus desta escola. De momento, entretanto,
recorria à oração e à meditação das Sagradas Escrituras
para neutralizar o veneno inalado nas aulas.
10.No ano de 1110 Bernardo regressou a Fontaines. Havia
permanecido treze anos em Saint Vorles onde aprendera
tudo quanto os seus mestres lhe haviam podido ensinar. A
questão de sua carreira futura estava ainda por decidir,
mas ele contava naturalmente com o conselho de sua mãe
para tomar a importante decisão. Aguardava-o, no
entanto, uma dolorosa decepção.
11.No mês de agosto seguinte ao regresso de Bernardo,
toda a família se encontrava reunida na antiga
residência. Era um período feliz. Certo dia, porém, em
meados daquele mês, Aleth, então somente com quarenta
anos de idade e aparentemente com saúde perfeita,
anunciou serenamente que a invadira o pressentimento da
aproximação de sua morte. Suas palavras, aparentemente
destituídas de qualquer fundamento, provocaram o maior
alarme na família. A idéia era insustentável, mas os
seus filhos a conheciam muito bem para suporem que
tivesse falado de ânimo leve e sem motivo plausível. Não
voltou-se a falar mais no assunto, porém, até o dia 31
de agosto, véspera do patrono da Igreja de Fontaines.
Naquele dia Aleth adoeceu com febre e foi forçada a
recolher-se ao leito. Chamou os seus filhos à cabeceira
da cama e solicitou que os sacerdotes lhe ministrassem o
sagrado viático, pois a sua hora se aproximava.
Concluída a cerimônia, a paciente rogou-lhes que
recitassem a ladainha para os moribundos, pois sentia-se
a extingüir-se. Proferiu os responsórios com o maior
fervor até que, no esforço de persignar-se, expirou
tranqüilamente.
Para Bernardo este foi o primeiro e, talvez, o maior
desgosto de sua vida.
III
01.Mais tarde, ao comentar as palavras de Cristo,
"É vantajoso para vós
que eu me afaste",
Bernardo sugere que a afeição natural dos discípulos
pelo Mestre, embora bondosa e sagrada, podia ter
representado um obstáculo para o seu progresso
espiritual se a sua presença judiciosa não se houvesse
retirado. Talvez, no mesmo sentido, o afastamento de
Aleth fosse vantajoso para Bernardo.
02.Para compreender um pouco do que sofreu sob o peso
desta imensa cruz, deve ler-se a mais comoventes das
orações fúnebres que brotou do seu coração amargurado
perante a sepultura de seu irmão Gerardo, e recordar que
era então relativamente velho, habituado a sofrimentos e
tristezas. Quando da morte de sua mãe, nem na própria
oração Bernardo conseguia encontrar lenitivo. Umbelina
esforçou- se por consolá-lo e Bernardo, para ser-lhe
agradável, associou-se em alguns passatempos com uns
jovens que freqüentavam agora o castelo.
03.Os desportos ao ar livre mais populares naquela época
eram os torneios e a caça com falcões, xadrez, dados,
prestidigitação e dança. Gradualmente Bernardo foi
gostando destas diversões. Principiou igualmente a
sentir prazer com a companhia de certos jovens cuja
conduta não teria merecido a aprovação da sua mãe. Era
um período perigoso. Experimentava aquele abandono
gradual que mais tarde descreveu ao seu amigo, o Papa
Eugênio:
"De começo,
afigura-se-nos insuportável.
Pouco depois, quando nos achamos
algo acostumados a ele,
não se nos apresenta tão medonho.
Mais tarde, ainda nos chocará menos,
até que nos deixa de chocar por completo.
Finalmente, principiaremos a sentir prazer.
Deste modo, pouco a pouco
vai-se adquirindo uma dureza de coração
que conduz ao desprezo pela virtude".
04.É a este período de dissipação relativa que Bernardo
alude no seu décimo terceiro Sermão sobre o Cântico dos
Cânticos:
"Portanto, aqueles que me nomearam
guarda das vinhas
deviam ter observado como as minhas
são mal conservadas.
Quanto tempo permaneceram abandonadas,
esquecidas e incultas!
Evidentemente que não se obteve delas
vinho algum,
pois os ramos da virtude murcharam
no tronco ressequido da fé.
Assim era eu quando vivia no mundo".
05.Bernardo encontrava-se em um declive escorregadio e
parecia de momento totalmente alheio ao perigo.
Necessitava de um choque para chamá-lo à realidade, o
choque de uma tentação violenta, que não tardou a
surgir- lhe.
06.Certa ocasião em que seguia a cavalo longe de casa em
companhia de alguns amigos, foram surpreendidos pelo
anoitecer, vendo-se forçados a procurar hospitalidade
numa casa estranha. Durante a noite Bernardo acordou
descobrindo uma visita em seu quarto. Era a dona da casa
no papel da enviada de Satanás. Assim que se apercebeu
do que se preparava simulou, com admirável presença de
espírito, estar em presença de uma tentativa de roubo e,
com todas as forças dos seus pulmões gritou:
"Gatunos, gatunos!"
A intrusa desapareceu instantaneamente e, escusado será
dizer, efetuada uma busca minuciosa, não surgiu ladrão
algum.
Uma segunda tentação do mesmo gênero encontrou-o
igualmente firme. Mas a terceira, pela qual ele foi
responsável, aproximou-o perigosamente da orla do
abismo. Esquecido de sua vigilância habitual, permitiu
que os seus olhos pousassem por um momento em um
objetivo perigoso. Pela primeira vez, experimentou a
rebelião da carne. Alarmado, então, perante o espectro
do mal e pleno de remorsos pela sua falta, implorou
imediatamente o auxílio do céu e, afastando-se do local,
foi mergulhar em um pequeno lago e ali se manteve, meio
morto de frio, até que a perturbação interna desapareceu
totalmente. Das palavras de seus primeiros biógrafos
conclui-se que decidiu naquele momento permanecer
perpetuamente casto; de qualquer forma, resolveu
modificar o seu modo de vida.
07.Encontrava-se agora diante de uma encruzilhada,
plenamente cônscio de que para ele não poderia existir
uma posição intermédia; devia dedicar-se totalmente a
Deus ou ao mundo, em nenhum dos casos serviria uma
lealdade condicionada.
08.Para quem possuía semelhantes dons transcendentais,
físicos, morais e intelectuais, não existia na Igreja ou
no Estado posição que não estivesse ao seu alcance.
Aguardavam-no brilhantes êxitos nos diversos campos da
Teologia, Filosofia, Direito ou Letras, ou poderia ainda
ter-se enfileirado na famosa galeria de clérigos
políticos. Em qualquer profissão que escolhesse
conseguiria certamente a imortalidade concedida pelo
mundo. Afirmar que tais empreendimentos terrenos não lhe
despertavam atrativos equivaleria negar que fosse
humano. Constituiria uma depreciação do valor de seu
sacrifício. Na realidade, sabemos que sentia forte
inclinação por uma carreira literária. A ambição,
"a última enfermidade
dos espíritos nobres",
parece ter sido o inimigo mais forte que encontrou;
ambição, não de poder, mas de celebridade literária.
"Ó ambição",
exclama ele em uma carta ao Papa Eugênio,
"tormento dos teus devotos!
Como dilaceras todos os que te amam
e apesar disso continuam a amar-te!"
E no seu quarto Sermão relativo à ascensão, referindo-se
em especial à ambição do saber, diz:
"Outro homem se sente ambicioso
do saber que ensoberbece.
Que trabalhos não terá que suportar!
Que angústia e amargura de espírito!
E, no entanto, pode-se dizer-lhe:
`Por mais que te esforces,
nunca alcançarás o teu objetivo'.
Mas, ainda que consiga
adquirir grande sabedoria,
qual será o seu proveito?
O Senhor disse:
`Destruirei a sabedoria dos sábios
e reprovarei a prudência dos prudentes'".
09.Mas se Bernardo receava demasiado os perigos
mundanos, existia ali perto o magnífico mosteiro de São
Benigno, infinitamente caro ao seu coração por ser o
santuário onde repousavam os restos mortais de sua mãe,
ou o de Cluny, igualmente próximo, com as suas centenas
de abadias dependentes, as quais haviam contribuído para
a Igreja com tantos santos, papas célebres e bispos,
durante os duzentos anos da sua existência. Ali os mais
nobres empreendimentos de arte nos diferentes domínios
da música, pintura, escultura e arquitetura, para não
falar no grandioso cerimonial, dariam plena satisfação
ao seu sentido estético.
Tudo isto, porém, não correspondia à vida monástica que
Bernardo idealizara. Possuía demasiadas consolações
naturais para oferecer, ao passo que a sua alma, como
ele dizia para consigo, necessitava de um forte
medicamento. Considerava-a muito brilhante, enquanto,
segundo o seu pensar, um monge deveria possuir um
instinto semelhante ao das toupeiras, um desejo de
ocultar-se da luz do Sol e dos olhares dos homens e fim
de dedicar-se inteiramente a Deus. `Ama passar
desapercebido', que será mais tarde a sua recomendação
aos outros, constituía agora o princípio que o guiava.
Portanto, os seus pensamentos afastaram-se descontentes
de Cluny para se ocuparem com outra casa religiosa,
pobre e obscura e aparentemente prestes a extingüir-se,
o mosteiro de Cister, cuja história de sua fundação é
chagado o momento de contar.
10.Por volta de 1077 um jovem inglês, que posteriormente
ficaria conhecido com o nome de Santo Estêvão Harding,
homem de boa linhagem e educação, após ter completado
sua educação em escolas da Irlanda e Paris, havia
partido em peregrinação ao túmulo dos santos apóstolos
em Roma. Regressava agora à Inglaterra e, em seu
caminho, dirigia- se ao novo mosteiro beneditino de
Molesmes, na Borgonha, para solicitar hospedagem e,
aproveitando a sua estadia, certificar-se dos relatos
que corriam sobre o extraordinário fervor desta
fundação.
Se Estêvão esperava encontrar em Molesmes uma magnífica
abadia deve ter ficado decepcionado. O mosteiro, se
assim podia ser chamado, consistia de um grupo de
cabanas de vime agrupadas em redor de um oratório de
madeira e cercadas de um terreno cultivado, desbravado
no centro de uma extensa floresta. Os monges, em número
reduzido, eram extremamente pobres, comendo pão, quando
conseguiam algum, obtido com o trabalho de suas mãos e
não poucas vezes se viam reduzidos à situação de
indigência absoluta.
Estêvão, no entanto, longe de sentir repulsa perante o
espetáculo de tantas privações, contemplo com sincera
admiração a coragem daqueles homens que haviam em boa
verdade abandonado tudo para seguir o seu Mestre. Julgou
por fim ter encontrado a realização do verdadeiro ideal
monástico e decidiu permanecer o tempo que lhe restasse
de vida naquele lugar consagrado. O abade de Molesmes,
Roberto, nascido em 1018, descendia de uma família nobre
de Champagne, homem de fino talento e elevados dons
pessoais, e um reconhecido mestre da vida espiritual,
cuja reputação de sabedoria e santidade já percorrera
toda a Europa. Alberico, o prior, era igualmente
conhecido pelo seu saber e devoção. Quanto aos monges,
eram humildes e trabalhadores, adeptos sinceros da
disciplina e profundamente dedicados ao seu santo abade.
O peregrino inglês solicitou e obteve admissão nesta
família, agora a aumentar rapidamente em número, feliz
na esperança de encontrar finalmente a paz.
11.Durante algum tempo tudo correu bem. Embora a vida
fosse árdua, estava liberta dos espinhos das
preocupações mundanas e, além disso, adoçada com o mel
das consolações divinas. No entanto, surgiu uma ocasião
em que os mantimentos escassearam e os monges se viram
ameaçados de morrer de fome, quando a Providência lhes
proporcionou alguns amigos generosos que lhes forneceram
não só o auxílio imediato para as suas necessidades como
também os libertou de terem de ganhar o sustento com o
trabalho de suas mãos.
Sendo o que é a fraqueza humana, o resultado era fácil
de prever. A virtude que florescera no inverno da
adversidade, murchou e feneceu perante o brilho da
prosperidade, e com a fortuna material veio o desamparo
espiritual. O abade proferia recriminações, súplicas,
ameaças, tudo debalde. Por fim, Roberto decidiu
abandonar para sempre os seus filhos degenerados. Na sua
resolução foi acompanhado por Alberico, o prior,
Estêvão, agora subprior e cerca de dezenove dos membros
mais fervorosos da comunidade.
12.Partiram no começo de 1098 para uma floresta vizinha,
situada na Diocese de Chalons. O ponto mais denso e
obscuro deste ermo silvestre, esconderijo seguro da
raposa e do lobo, num local conhecido pelo nome de
Cister, veio a ser, deste modo, o berço da Ordem
Cisterciense.
13.Cerca de um ano mais tarde a comunidade de Molesmes,
prometendo uma regeneração total, conseguiu que o Papa
Urbano II ordenasse a volta de Roberto ao seu mosteiro
de origem. No novo mosteiro de Cister Alberico tornou-se
abade e Estêvão foi nomeado prior.
14.No ano de 1109 Santo Alberico abandonou para sempre
os seus companheiros e Estêvão foi escolhido para
suceder- lhe como abade de Cister. Apesar de haver
herdado todas as virtudes de seu santo predecessor, o
novo abade tornou-se notado especialmente pelo seu amor
aos pobres. Decidiu que seus subordinados deveriam se
contentar com a simplicidade. Encarava as ornamentações
supérfluas das igrejas monásticas como um desacato à
humildade religiosa e uma fértil fonte de distrações.
Tudo foi banido inexoravelmente. Estêvão chegava a
lamentar-se de que o amparo fornecido pelos ricos não
permitia que o seu mosteiro ficasse tão dependente da
Providência como ele desejava. Hugo, o novo Duque da
Borgonha, foi por este motivo informado que as suas
visitas a Cister deixavam de ser desejáveis, embora seu
irmão fizesse parte da comunidade e seu pai estivesse
sepultado na igreja da Abadia.
15.A verdade era que Estêvão decidira não permitir laço
algum entre a Ordem e o mundo. E conquanto previsse as
conseqüências que esta ruptura acarretaria para Cister,
não vacilaria em seguir o único caminho que os seus
princípios lhe indicavam.
16.O mosteiro não tardou a ficar reduzido ao estado de
abandono. Haviam decorrido muitos anos sem a chegada de
um único noviço.
17.No ano de 1111, quando a mortalidade penetrou na
comunidade e Estêvão viu seus filhos, um após o outro,
serem transportados para o túmulo, ele foi invadido pela
dúvida torturante sobrte se a vida austera que ele e os
seus monges haviam observado estaria de acordo com a
vontade divina. Agindo, então, conforme se crê, por uma
inspiração especial, ordenou a um irmão moribundo que
voltasse do além com uma resposta.
18.Alguns dias após a sua morte, o religioso apareceu
envolto em uma auréola, com a certeza de que o seu
sacrifício fora aceito. Dentro em pouco a sua paciência
seria recompensada de uma maneira que ultrapassaria as
suas mais otimistas esperanças. O abade compreendeu
então que cada estabelecimento, assim como cada
indivíduo, destinado a realizar algum feito importante
para a glória divina, deve ficar marcado com o sinal da
cruz.
IV
01.Tal era a abadia para onde os pensamentos de Bernardo
começaram a dirigir-se quando se interrogou acerca de
seu futuro. Certamente não poderia encontrar-se outro
refúgio tão adequado para quem desejasse morrer para o
mundo e dedicar-se inteiramente à devoção.
02.No entanto, a prudência aconselhava-o a, antes de
prosseguir, consultar alguém cuja devoção e sabedoria
fossem dignas de confiança, alguém que desempenhasse
para ele a função de guia espiritual. Ninguém lhe
pareceu melhor qualificado do que o seu tio materno, o
qual, embora fosse militar profissional com elevada
patente no exército, era irmão digno da santa Aleth.
Gaudry estava ocupado naquele momento no cerco de
Grancey-le-Château mas, mesmo assim, procurado por
Bernardo, longe de tentar dissuadir o jovem de seu
propósito, mostrou a sua inteira aprovação.
03.Bernardo possuía outros parentes naquele acampamento
militar aos quais, depois de ver-se assim encorajado por
seu tio, revelou também a sua intenção. Todos estes, no
entanto, acolheram a comunicação com um estado de
espírito bastante diferente. Bernardo viu-se
imediatamente assaltado por uma onda de protestos
veementes. Cister! Só esta palavra bastava para
inspirar- lhes horror. Representaria autêntico suicídio
para alguém como ele. Não era capaz de descobrir melhor
emprego para o seu talento do que enterrá-lo sob o signo
do silêncio perpétuo? Não receava o castigo indicado
para o servo inútil? Se se considerava incapaz para o
exército, não poderia buscar uma carreira na Corte ou na
Igreja, ou em algumas das escolas famosas de Teologia,
Filosofia, Direito ou Letras?
04.A princípio estes argumentos não lhe causavam
impressão, mas como o ataque se mantinha, foi
fraquejando até que cedeu totalmente. Não seria monge,
mas sim homem de letras. Seus irmãos, evidentemente,
ficaram satisfeitíssimos com o sucesso obtido. Quanto a
Bernardo, sentia tudo menos contentamento. Regressou de
Fontaines amargurado, perseguido pela dolorosa suspeita
de que desobedecia a uma chamada divina e expunha ao
perigo a sua salvação. Anularia ele assim a consagração
de seu nascimento ao dedicar a vida em busca da vaidade?
05.Por fim, no outono de 1111, caminhando pela estrada
de Grancey onde o exército ainda se achava acampado, ao
passar por uma igreja solitária entrou e, prostrado
diante do altar, implorou ao Deus Todo Poderoso que se
apiedasse da sua desdita. A sensação da presença de sua
mãe invadiu-o com espantoso realismo e, ao mesmo tempo,
o gelo que cobria o seu coração derreteu-se e a sua alma
angustiada encontrou conforto em uma torrente de
lágrimas de felicidade. Todas as dúvidas e trevas se lhe
desvaneceram do espírito, iluminado uma vez mais pelo
Sol radiante da graça divina. Com um regozijo maior do
que a sua antiga tristeza, Bernardo chegou a Grancey e
informou os seus parentes do renovado propósito de
consagrar a vida a Deus e à sagrada religião. O ataque
reacendeu-se com vigor mas, desta vez, inutilmente.
06.Então, perante a surpresa geral, Gaudry, apesar de
marido e pai, anunciou a intenção de acompanhar o seu
sobrinho a Cister. Seguiram juntos para Fontaines para
despedirem-se de Tescelin. No castelo, encontraram
Bartolomeu, irmão de Bernardo, nesta época um rapaz de
dezesseis anos, que acedeu prontamente ao convite
fraterno e prometeu reunir-se-lhes na sua fuga do mundo.
07.Encorajado por este triunfo, Bernardo concebeu o
propósito ambicioso a aparentemente infrutífero de
induzir os seus irmãos no exército a proceder da mesma
forma. Fêz, portanto, mais uma vez a sua aparição no
acampamento.
08.Principiou seu apostolado com André, que acabava de
receber as esporas de cavaleiro e cujo espírito se
encontrava estonteado com sonhos de glória militar. A
proposta foi acolhida com soberano desdém. Não se
curvava perante argumento algum, até que repentinamente
a santa Aleth surgiu diante dos seus olhos, a sorrir
brandamente e encorajando-o, como que a apoiar o apelo
de seu irmão. O assunto ficou imediatamente resolvido. A
carreira militar de André findara.
09.A seguir foi a vez de Guido. O caso era um pouco
delicado pois, além de casado, possuía filhos, o mais
novo dos quais ainda de peito. O atentado para separar
laços tão sagrados parece-nos hoje extremamente cruel,
se não mesmo criminoso, mas devemos recordar-nos que
Bernardo era um santo de Deus e agia por inspiração
divina. Guido, homem de caráter profundamente religioso,
vencido pela sua urgência, prometeu ingressar no
convento com a condição que a sua jovem esposa, Isabel,
desse o seu consentimento. Era este um duro sacrifício
para pedir à pobre esposa e mãe. No entanto, Bernardo
não hesitou. Em sua opinião nenhum sacrifício era
excessivo desde que fosse dedicado a Deus e à
eternidade. Porém Isabel rejeitou a resposta com
indignação. Consentir em renunciar ao marido que adorava
e ao pai dos seus desamparados filhos? Nunca. Bernardo
então assegurou-lhe que não haveria necessidade disso,
pois antes da próxima Páscoa Guido ficaria livre para
seguir a sua vocação por consentimento de sua esposa ou
por sua morte.
E realmente assim sucedeu. Isabel adoeceu pouco depois
e, prestes a expirar, mandou chamar o seu inflexível
cunhado. Quando este chegou ela exprimiu-lhe o seu
arrependimento por se haver oposto à vontade de Deus.
Guido agora tinha o seu consentimento para ingressar no
convento. Depois desta cena principiou a melhorar e não
tardou a ficar completamente restabelecida. Por volta de
1114 retirou-se para o convento de Jully, uma casa
beneditina dependente de Molesmes, onde veio a tornar-se
superiora.
10.Conquistado Guido, Bernardo dedicou-se ao seu segundo
irmão. Gerardo era um militar nato com elevada reputação
de bravura e prudência, e extremamente popular entre os
soldados. Em seu entender, a carreira das armas era a
mais nobre a que um homem poderia se dedicar. Sentia-se,
portanto, altamente indignado com o fanatismo de
Bernardo e com a loucura dos que o seguiam. Podemos
imaginar como recebeu o convite para imitar-lhes o
exemplo. Os argumentos e as súplicas apenas serviram
para o irritar ainda mais. Então Bernardo, inspirado por
aquele espírito de profecia já revelado no caso de
Isabel, pousou a mão no peito do militar e lhe disse:
"Sei perfeitamente
que apenas a dor
te abrirá os olhos.
Portanto escuta:
não tardará a surgir o dia
em que uma lança
te perfurará o peito
e abrirá até o coração
o caminho para os conselheiros da salvação
que agora desprezas rancorosamente.
Invadir-ta-á o temor da morte,
mas não morrerás".
Dias depois Gerardo foi ferido e feito prisioneiro.Uma
lança cravou-se-lhe no corpo no local exato onde havia
pousado a mão de seu irmão. Convencido de que o
ferimento era mortal e que estava prestes a expirar,
invadiu-o um intenso terror e, sem saber o que dizia,
gritou:
"Sou um monge,
um monge de Cister".
Bernardo. chamado às pressas, recusou-se a comparecer.
Declarou, em vez disso, ao mensageiro:
"Assegurai-lhe que o seu ferimento
não é mortal,
mas que lhe ficará cravado
para sempre".
E assim sucedeu. Tal como Santo Inácio muitos anos mais
tarde, Gerardo teve bastante tempo disponível para
meditar na futilidade das coisas terrenas e na
importância suprema das coisas eternas.
11.Bernardo e seus novos companheiros não seguiram,
todavia, imediatamente para Cister. Retirados
temporariamente em Chatillon, foi considerado por eles
um bom presságio quando, na primeira vez em que
apareceram juntos na igreja, em 22 de outubro de 1111,
terem escutado a leitura da seguinte passagem da
Epístola aos Filipenses:
"Aquele que principiou em vós
uma boa obra,
aperfeiçoa-la-á até o dia
de Jesus Cristo".
12.Lembrou-se então Bernardo de um seu amigo dos tempos
de estudante, Hugo de Macon, e propôs-se a que este
jovem os acompanhasse ao convento. Hugo havia ouvido
falar do estranho comportamento de Bernardo, mas havia
entendido que ele estaria se preparando para uma viagem
em peregrinação à Terra Santa, o que lhe parecia uma
idéia interessante, mas quando entendeu que o destino
era Cister, sentiu um desgosto profundo. Suspirava e
lamentava-se inconsolavelmente. Na manhã seguinte as
suas lágrimas ainda corriam, mas sua explicação já era
outra:
"Ontem eu chorava por ti,
hoje eu choro por mim",
disse a Bernardo. Converteu-se.
13.Bernardo dedicou-se a seguir a um apostolado regular
entre os seus amigos e conhecidos. Tão maravilhoso foi o
seu êxito que, segundo nos contam os escritores
contemporâneos,
"as mães ocultavam-lhe os filhos,
as esposas os maridos
e os amigos os conhecidos".
O seu apelo fazia-se quase sempre irresistível pois,
como os mesmos autores acrescentam,
"o Espírito Santo conferia-lhe
um tal fervor e poder
nas suas palavras
que estas suplantavam
qualquer outro atrativo".
Num espaço de tempo relativamente curto Bernardo reuniu
na residência de seu pai em Chatillon trinta e dois
jovens, alguns deles casados, e não poucos pertencentes
às primeiras famílias de Borgonha.
14.Quanto ao irmão Gerardo, durante este período esteve
quase cinco meses recluso em sua prisão. Certa manhã, no
começo da Quaresma, ouviu distintamente uma voz que lhe
dizia:
"Hoje recuperarás a liberdade".
O dia decorreu até ao anoitecer sem que surgisse a
prometida libertação. Porém, a esta hora, ao sacudir as
cadeias que lhe sujeitavam os pés, verificou assombrado
que cediam ao seu impulso. O ferrolho da porta deslizou
facilmente à sua pressão. No exterior encontrava-se uma
enorme multidão a qual, em vez de impedir-lhe a fuga,
dispersou-se aterrorizada. Nas ruas alguns dos
carcereiros dirigiram-se-lhe e falaram com ele,
aparentemente esquecidos que tratava-se de um
prisioneiro, sem demonstrarem a menor surpresa em verem
um inimigo transitar livremente pelas ruas da cidade.
Por fim, após atravessar os portões da cidade sem
encontrar obstáculo algum, dirigiu-se para Chatillon.
15.Os jovens ali reunidos seguiam uma vida em comum,
tendo a Bernardo como a seu superior virtual. O tempo
era dedicado a exercícios espirituais como preparação
para o futuro. Neste interim, um deles foi assaltado por
uma visão estranha que os intrigou profundamente e que
só o tempo poderia interpretar. Viu-os a todos sentados
a uma mesa guarnecida de comida, maravilhosamente branca
e de sabor agradável, que partilhavam animadamente com a
exceção de dois deles. Um destes recusava tocá-la, o
outro parecia impossibilitado de levá-la à boca. A visão
foi explicada mais tarde com a deserção de dois de seus
membros.
16.A permanência dos amigos em Chatillon durou seis
meses, de outubro a abril. Nessa ocasião, os assuntos
que lhes haviam retardado a partida, entre eles a
disposição de alguns assuntos pendentes de alguns dos
membros, já estavam resolvidos e estavam livres para
executarem os seus desígnios. Contudo, Bernardo e seus
irmãos deviam ir antes a Fontaines para receber a bênção
de despedida de seu pai. Foi uma cena comovente, os
cinco nobres irmãos ajoelhados diante de Tescelin.
Custou-lhe bastante o sacrifício de renunciar para
sempre àqueles jovens que representavam o seu orgulho,
esperança e felicidade. Mas dominando com esforço a
emoção, abençoou-os em silêncio.
17.Enquanto se afastavam, viram Nivard, um rapazinho de
uns doze anos, entretido a brincar com outras crianças.
Guido chamou-o e disse-lhe:
"Irmãozinho, quando cresceres serás rico,
pois deixamos-te o castelo
e todas as outras propriedades",
ao que o jovem replicou:
"Para vós o céu, para mim a terra.
Esta distribuição não é justa".
18.No castelo ancestral o desconsolado pai lamentava a
desaparição de suas esperanças e a perda de cinco dos
seus sete filhos. Seu desgosto teria sido mais intenso
se pudesse prever o dia não muito distante em que os
dois destinados a consolá-lo também seguiriam o exemplo
dos irmãos. Então nesse dia o velho fidalgo também
trocará a solidão e a tristeza das suas salas desertas
pelo claustro.
19.Certo dia, próximo da Páscoa, no ano da graça de
1112, possivelmente no Domingo de Páscoa, o abade de
Cister foi informado da chegada ao convento de um grupo
de cavalheiros que desejavam falar-lhe. Bernardo falou
em nome dos companheiros e solicitou para eles, assim
como para si próprio, a admissão na irmandade. o santo
abade compreendeu que aquilo era a realização da
profecia e sentiu o coração repleto de gratidão e de
alegria.
20.Bernardo encontrava-se no vigésimo segundo ano da sua
existência quando ingressou em Cister. Pouco ficou
registrado da sua vida no noviciado. No entanto, sabemos
como era preenchido o seu tempo, visto que a regra
sagrada de São Bento, seguida à letra no convento,
determina até os mais ínfimos pormenores as ocupações
dos monges ao longo das dezoito ou dezenove horas de seu
prolongado dia.
21.Bernardo adquiriu um profundo gosto pela salmodia que
lhe ocupava seis ou sete horas de cada dia. O tempo do
ofício nunca lhe parecia suficientemente prolongado para
a sua devoção. No capítulo do jejum e abstinência
ultrapassava de longe as prescrições da regra,
indubitavelmente com a aprovação dos superiores. Em
conseqüência deste excesso contraíu, ainda como noviço,
o cruel desarranjo gástrico que o atormentou toda a vida
e o levou finalmente à sepultura. A tal ponto mortificou
o seu paladar que pareceu ter perdido o sentido do
gosto. Assim, conta-se que uma vez ingeriu por engano
azeite em lugar de água sem que tivesse notado a
diferença. O sentido da audição foi igualmente submetido
a penitência. Escutou com excessiva atenção as notícias
que vinham a comunicar-lhe a ponto de, ao chegar ao coro
para o Ofício da Nona, descobrir a ausência de devoção e
o seu espírito presa de distrações. O fato simplesmente
decidiu-o a não voltar a prestar atenção a qualquer
conversa. Posteriormente, outras pessoas que o visitaram
notaram que ele tapara os ouvidos com algodão. Com isso
conseguiu um duplo propósito, o de não escutar as
notícias que o distraíssem e o de adquirir a fama de
estúpido. Com a vista podemos avaliar a que ponto ele
acautelava os olhos pelo fato de que, no final de seu
ano de noviciado ele ainda ignorava se o teto de seus
aposentos era plano ou abobadado e de que forma era
iluminada a igreja. Anos mais tarde ele percorreria um
dia inteiro de viagem às margens do belíssimo lago Leman
sem ter erguido a vista uma única vez.
22.O trabalho manual era a única coisa em que, apesar de
sua boa vontade, Bernardo não conseguia igualar-se aos
seus irmãos. A sua força revelou-se insuficiente para os
pesados trabalhos do campo. Mas havia uma outra espécie
de trabalho a que se dedicavam os monges de Cister
durante o ano de noviciado de Bernardo. Santo Estêvão,
conforme já dissemos, era um homem culto, dos mais
cultos de sua época. Logo que foi nomeado abade
empreendeu uma tarefa que lhe valeu a admiração de todos
os estudantes de gerações posteriores. A existência de
inúmeras variações nos códices das Sagradas Escrituras
sugeriu-lhe a idéia de elaborar uma nova edição revista
para a utilização dos monges. Constituía um
empreendimento que implicava a compilação de versões em
diversas línguas, a fim de obter a melhor leitura
possível. A obra traduziu- se num amplo sucesso e ainda
hoje é de grande importância. Em seguida Estêvão
dedicou-se ao Missal fazendo com este e com vários
outros textos litúrgicos e até com a Regra de São Bento
e o calendário o que já havia feito com a Bíblia.
23.Bernardo chegou ao termo de seu noviciado com a saúde
abalada, mas mais decidido do que nunca a consagrar a
vida à prática da penitência. A sua carreira
constituiria um holocausto, uma renúncia do seu ser que
cravaria na cruz com os votos irrevogáveis da religião.
Nunca se permitiu desviar-se um mínimo deste objetivo.
Era seu costume reanimar sua devoção, em especial ao
enfrentar alguma dificuldade, colocando diante de si
próprio a interrogação:
"Bernardo, Bernardo,
a que vieste?"
Prestaram então os votos de pobreza, castidade,
obediência, conversão de hábitos e firmeza, de acordo
com o cerimonial observado ainda hoje na Ordem
Cisterciense.
Oração de São Bernardo
Lembrai-Vos, ó piíssima Virgem Maria,
que nunca se ouviu dizer
que algum daqueles
que têm recorrido à vossa protecção,
implorado a vossa assistência,
e reclamado o vosso socorro,
fosse por Vós desamparado.
Animado eu, pois, de igual confiança,
a Vós, Virgem entre todas singular,
como a Mãe recorro,
de Vós me valho e,
gemendo sob o peso dos meus pecados,
me prostro aos Vossos pés.
Não desprezeis as minhas súplicas,
ó Mãe do Filho de Deus humanado,
mas dignai-Vos
de as ouvir propícia
e de me alcançar o que Vos rogo. Amen.
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